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Tirar pombos da manga

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Por Carol Bensimon

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Não sei se escrever é transpor ideias para o papel. Parece que isso pressupõe que as ideias já estão guardadas em algum lugar. E talvez não estejam, quero dizer, talvez seja a intenção da materialização (sentar na frente do computador, abrir o bloquinho de notas) o que faz a gente ter as ideias. Acontece muitas vezes comigo. Eu não teria pensado em tal coisa — seja um argumento, seja um detalhe de uma cena fictícia — se não fizesse um esforço mental, se não me dispusesse a parar com qualquer outra atividade por alguns minutos ou algumas horas. Não há um livro inteiro flutuando na minha cabeça, nem mesmo uma resenha de livro, nem mesmo esse post. Claro que outra maneira de colocar isso seria dizer que há algo na cabeça sim — memórias, pedaços de sonhos esquecidos, material inconsciente –, e que a decisão de transformar isso em concretude é precisamente o que joga uma espécie de luz sobre essa confusão. De qualquer forma, isso não muda em muita coisa o que estou dizendo: que muito da criação se dá, de fato, quando começamos a colocar uma letra depois da outra.

Cada frase é uma tomada de decisão. Não acho que essa seja uma afirmação tão óbvia a ponto de não precisar ser dita. Isso porque há uma visão romântica muito difundida que acredita, entre outras coisas, que personagens tomam vida e começam a agir sozinhos, como se fossem crianças que crescem e passam a não depender mais dos pais/escritores. Pode ser bonita, essa ideia, mas é tipo acreditar em Adão e Eva, e não no Big Bang. O personagem é o que o livro disser sobre ele. Para chegar a esse tudo que eu, escritor, resolvi colocar no livro sobre o personagem x, há uma enorme quantidade de coisas que eu deixei de lado, que descartei, todos os caminhos não escolhidos. Quando escrevo, em uma narrativa, a frase “ele calça as botas”, eu não estou escrevendo “ele vestiu a camiseta havaiana” ou “ele colocou o fedora na cabeça”, por motivos que só eu conheço (ou nem isso). Se a frase seguinte é “quer ser desesperadamente um cara que usa botas”, opa, eu dei uma informação psicológica, alguma humanidade pra esse sujeito: parece que ele está tentando ser alguém que ainda não é. A partir daí, é preciso manter uma coerência interna, então pode parecer que a personagem está “tomando as decisões”, mas simplesmente porque, quanto mais o livro avança na escrita, mais o personagem acumula características físicas e psíquicas, mais se define uma trajetória, mais se revela um passado, até o momento em que, bem, a gente sabe que de que jeito ele vai entrar naquele bar, como ele costuma agir com as mulheres e que tipo de música ele ouve.

Então não, meu personagem não poderia se rebelar na página 32, resolver arrancar as botas contra a minha vontade e dizer que ele se sente ótimo na sua pele, que aquilo tudo de estou-procurando-meu-lugar-no-mundo é uma besteira, que ele tem uma ideia melhor de conflito etc. Ele fica quietinho. Eu meio que afasto a câmera e mostro um pouco a cidade, iluminando uns detalhes que, pela lógica narrativa since Flaubert, são entendidos como coisas que ele, o personagem, está percebendo, mas até isso é ambíguo (e realmente não importa, importa?). Quando volto ao personagem, ele já encontrou uma pessoa na beira da praia. Eles conversam sobre diversos assuntos. Eventualmente, ela diz: “Gostei das suas botas.” Ele diz: “brigado”. Aí é a deixa para que eu fale mais sobre as tais botas, porque dar toda a informação em bloco às vezes não é legal: “Ele comprou as botas em uma loja que vendia tudo quanto é tipo de coisa de segunda mão. Patos de porcelana. Discos arranhados da Dolly Parton. Cinzeiros de cassinos que não existem mais. São marrons com cadarço e parecem ter passado por momentos difíceis”.

O que eu quero dizer é que eu não sei se acreditar em mágica ajuda nesse ofício. É muito mais ilusionismo do que mágica, e isso não tira a beleza do ofício, muito pelo contrário. Grande parte dos erros e acertos pode estar na montagem, essa que ocorre ali, palavra a palavra, linha a linha, com ideias que, muitas vezes, surgem principalmente da nossa disposição em tê-las.

* * * * *

Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.


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